Revista Runners's: Doce rotina

Se a diabetes faz parte da sua vida, corra para não deixá-la ditar as regras

Rodrigo Gerhardt | Ilustração Daniella Domingues

Silenciosa e implacável, ela avança pelo mundo. Hoje, 285 milhões de pessoas têm diabetes melittus, segundo a Federação Internacional de Diabetes. No Brasil, são quase 10 milhões (eram 7 milhões em 2007 e devemos chegar a 17 milhões em 2030).

A diabetes é uma disfunção que eleva o nível de açúcar (glicose) no sangue, causada pela diminuição total ou parcial da quantidade ou da ação do hormônio insulina, produzido pelo pâncreas. A insulina é responsável por atuar sobre o açúcar, retirando-o do sangue para ser usado pelas células como energia.

Com insulina "de menos", o nível de açúcar no sangue vai às alturas, aumentando as chances de o indivíduo desenvolver doenças cardiovasculares e ter complicações em diversos órgãos, que podem inclusive levar à cegueira e até à morte. "Como na maioria dos casos a doença não apresenta sintomas na sua evolução, metade dos diabéticos não sabe que tem o problema. Em função do estilo de vida sedentário e do crescimento da obesidade, a diabetes vem se manifestando mais cedo, entre crianças e adolescentes", afirma o endocrinologista Roberto Betti, chefe do Centro de Diabetes do Hospital Oswaldo Cruz, em São Paulo.

O melhor remédio

A gordura corporal, principalmente a visceral, por trás da barriguinha, é a principal culpada por diminuir a sensibilidade à insulina. É aí que a corrida pode ajudar. É possível prevenir a doença, especialmente a diabetes tipo 2, a que mais cresce na população mundial (entenda a diabetes no quadro abaixo). Principalmente se o exercício for aliado a uma dieta equilibrada. "Essas medidas podem reduzir em 58% o risco de diabetes após três anos, sem a necessidade de medicamentos", diz Betti. A recomendação do American College of Sports Medicine é de pelo menos 30 minutos de atividade leve a moderada por dia, cinco vezes por semana. "A corrida combate a obesidade e atenua os riscos cardiovasculares, que são as principais causas da diabetes tipo 2. Aumenta a sensibilidade à insulina e regula processos metabólicos, melhorando a eficiência do corpo em gerenciar a glicemia [concentração de glicose no sangue]", diz a endocrinologista Karla Melo, do Hospital das Clínicas de São Paulo.


Atividades físicas como a corrida são especialmente indicadas para quem tem propensão a desenvolver diabetes, ou seja, pessoas com sobrepeso que já sofrem alterações na glicemia, que nelas costuma ficar entre 100 e 126 mg/dl (miligramas por decilitro de sangue) em jejum. Como é uma situação que ainda pode ser revertida, a mudança de hábitos deve ser imediata, incluindo também a alimentação. Segundo Joyce Mourão, nutricionista do Hospital Oswaldo Cruz, o ideal é evitar alimentos ricos em açúcar, gordura e farinha refinada e priorizar os carboidratos complexos sobre os simples. Segundo a Associação Americana do Coração, quem come de duas a cinco porções de arroz integral tem 11% menos chance de desenvolver a diabetes tipo 2. Já quem come de duas a cinco porções de arroz branco por semana tem 17% a mais de chance de ter a doença.

Corrida e diabetes

Uma vez instalada a diabetes, o jeito é mantê-la sob controle. E a corrida é uma poderosa ferramenta nessa tarefa. "Ao tornar o organismo mais sensível à insulina, o exercício pode reduzir ou dispensar o uso do hormônio injetável ou medicamentos orais. Por isso, hoje já é prescrito como coadjuvante no tratamento", afirma Páblius Braga, coordenador do Centro de Medicina do Exercício e do Esporte do Hospital Nove de Julho, em São Paulo.

Além disso, o melhor condicionamento físico atua diretamente na redução dos riscos cardiovasculares - 73% dos diabéticos também têm hipertensão -, reduzindo o LDL, o "colesterol ruim", e os triglicérides. Combinada com a alimentação adequada, a corrida mantém a glicemia sob controle e afasta possíveis complicações da diabetes (veja o quadro “HORA DE FREAR”).

Esportes e diabetes lado a lado

Diabético tipo 1 desde os 4 anos de idade, o consultor de RH Alexei Ângelo Caio, 35 anos, que vive em São Paulo, conta que praticou vôlei, ciclismo, ginástica olímpica e artes marciais na adolescência. Hoje, divide-se entre as aulas de aikidô e as ultramaratonas. Em 2009, completou em trio os 217 km da BR-135, considerada a prova mais difícil do Brasil pelo sobe e desce constante da serra da Mantiqueira. "Consigo ter uma vida saudável e praticamente sem restrições, por saber manter a diabetes controlada."

Durante mais de dez anos, Alexei, que corre com seu kit de monitoração e faz de 15 a 20 exames de ponta de dedo (veja abaixo, em "Como controlar") por dia, registrou seus dados metabólicos e as respostas glicêmicas antes, durante e depois dos treinos. "Hoje, isso me dá um autocontrole maior e até uma vantagem competitiva sobre os outros atletas não-diabéticos, que muitas vezes enfrentam dificuldades com uma hipoglicemia ou desidratação por não saberem identificá-las."

Comer para correr

O advogado paulistano Marcello Junqueira, 29 anos, é um exemplo de que apenas a corrida não faz milagre. Mesmo treinando regularmente desde 2004 e tendo feito uma maratona, ele descobriu que tinha diabetes tipo 2 em 2008, em um exame de rotina por causa de uma virose.

"Tenho predisposição familiar, mas não me preocupava com nada. Era do grupo que corria para comer e por causa disso sempre mantive um sobrepeso. Só emagreci mesmo quando descobri a doença e mudei a dieta", conta Junqueira, que cortou o açúcar, inclusive a frutose: não toma nem suco, só come a fruta, in natura. Também reduziu os carboidratos, priorizando os complexos, aumentou a ingestão de proteína magra, de legumes e verduras. Com isso, reduziu seu percentual de gordura de 17% para 12%. Hoje, continua correndo, agora para manter a diabetes sob controle.

Um novo atleta

Mesmo para quem já tinha experiência de treino, como o administrador carioca Kenner Assis, 43 anos, a diabetes exigiu um novo aprendizado. "No início foi um susto. Sempre fiz esporte, então fiquei revoltado quando descobri que tinha a doença. Mas quando resolvi aceitar, passei a buscar informações e fui percebendo que poderia continuar com tudo. Mas, precisei entender a importância do tripé medicação-alimentação-exercício", conta.

Kenner passou a planejar seus treinos com uma equipe multidisciplinar (que incluía profissionais de educação física e nutrição), tendo que muitas vezes frequentar o hospital quando negligenciava alguns cuidados. Depois da diabetes, passou a praticar triatlo [modalidade que inclui corrida, natação e ciclismo], já fez algumas ultramaratonas e participou três vezes da Volta na Ilha, em Florianópolis (prova de revezamento cujo objetivo é dar a volta completa à Ilha de Florianópolis, em Santa Catarina, em um percurso de 150 km). "É preciso desmistificar a ideia de incapacidade dos diabéticos", diz.

Primeiros passos

Os exames que o diabético deve fazer antes de correr

Antes de começar uma atividade física (como a corrida), procure um médico. Diabético ou não, você fará exames de sangue (para medir as taxas de colesterol e triglicérides e detectar anemia) e o eletrocardiograma e o ergométrico, exames que atestam a capacidade cardiovascular para o esforço. Mas, se é diabético, deve fazer um exame de glicemia glicada, que mede a taxa de açúcar dos últimos dois a quatro meses. Se tiver mais de 25 anos e for portador de diabetes tipo 1 há mais de dez anos ou do tipo 2 há mais de 15 anos, deverá repetir anualmente o eletro e o ecocardiograma. "Também deverá fazer uma avaliação para detectar possíveis complicações específicas do diabetes. Na ausência delas, não há restrição para a prática da corrida, diz a educadora física Marcela Perazo, doutora em ciências pela USP.

Como controlar

Dicas práticas para ter qualidade de vida

O exame de glicemia capilar, conhecido como "ponta de dedo" é imprescindível para o corredor diabético. Basta uma picada no dedo para que um aparelhinho forneça a glicemia em 5 segundos e o indivíduo possa fazer alguma correção (como aplicação de insulina ou ingestão de carboidrato). "A monitorização contínua é fundamental porque no diabético a variação glicêmica é mais frequente e mais brusca, oferecendo um risco grande de sofrer uma hipo ou hiperglicemia", diz a endocrinologista Ana Cláudia Ramalho, diabética tipo 1, corredora e coordenadora do Departamento de Exercício da Sociedade Brasileira de Diabetes.

A baixa de açúcar no sangue (hipoglicemia) causa aumento de suor, tremores, escurecimento da vista, palidez, taquicardia, podendo ocasionar desmaio, convulsão e até coma no diabético em apenas 15 minutos, se não for corrigida. Mas nem toda hipoglicemia é causada pela diabetes. Quem ingere alimentos de alto índice glicêmico (como pão branco, biscoitos e cereais não integrais, batata) antes do treino também pode ter um pico de insulina que reduz rapidamente a glicose no sangue, causando a chamada hipoglicemia de rebote ou reativa. Nesse caso, basta ingerir novamente um carboidrato simples de absorção rápida (como mel ou gel de carboidrato).

Já a alta de açúcar, característica da hiperglicemia, leva a um quadro de acidez do sangue e profunda desidratação e fadiga. "Como alguns dos sintomas podem ser mascarados pelo exercício e cada pessoa reage de forma diferente, a medição da glicemia deve ser feita constantemente, antes e depois do treino, mas também durante, se o exercício ultrapassar uma hora, a cada 30 minutos ou 5 km percorridos, no caso da corrida", diz a coordenadora de esporte da Associação de Diabetes Juvenil, Sônia de Castilho. Se a recomendação clínica é de seis a oito medições de glicemia por dia, antes e depois das principais refeições, em jejum e durante a madrugada, esse número se torna maior para quem faz exercícios físicos.

Além da glicemia, é importante observar a presença de cetona no sangue. Trata-se de um subproduto da oxidação de gorduras e proteínas que se forma quando o nível de açúcar está alto em função da pouca ação da insulina. "As cetonas tornam o sangue ácido e causam uma desordem metabólica", afirma a educadora física Marcela Perazo. A pessoa pode sentir fraqueza, náuseas, dor abdominal, cãibras, tontura, confusão mental e até entrar em coma.


Hora de treinar

Aprenda a correr com segurança

No treinamento do diabético, é fundamental o acompanhamento de um médico e de um profissional de educação física, pois até mesmo os corredores mais experientes estão sujeitos a alguma ocorrência. "Na última Maratona de São Paulo, tive uma hipoglicemia no km 28 por causa de um gel que fermentou no estômago", diz o ultramaratonista Alexei Ângelo Caio.

"A esteira pode ser muito útil para os iniciantes na definição de parâmetros. Costumo usá-la com os alunos, que correm, ingerem carboidrato e fazem o exame de ponta de dedo a cada meia hora de corrida para ver como o corpo responde", diz Emerson Bizan, diretor técnico da assessoria esportiva Nova Equipe, de São Paulo. Ele, que é diabético tipo 1, decidiu se especializar na corrida após perceber em si mesmo os benefícios da atividade no alívio das crises de hiperglicemia. Hoje contabiliza 43 maratonas no currículo.

Segundo Bizan, tanto o planejamento e a estrutura do treino (em rodagens, intervalados e longões) quanto a progressão são os mesmos de um não-diabético. "A diferença está no cuidado com a hidratação e a reposição energética ao longo do exercício, que precisam ser acertadas de forma individual. Mas, com as informações glicêmicas, é fácil prevenir qualquer desconforto. Esses dados trazem ainda vantagens para a recuperação pós-treino do diabético, que fica mais fácil e até mais rápida", diz o treinador.

Reposição energética

Em geral, corridas de 5 a 10 km são curtas e por isso não exigem exames de ponta de dedo ou ingestão de carboidratos durante o exercício, desde que isso tenha sido feito antes. Para provas acima dos 10 km, a tendência é a glicemia baixar durante o exercício. A recomendação padrão é a ingestão de 15 a 20 g de carboidrato simples a cada meia hora, com a medição da glicemia logo depois. "É possível usar o sachê de gel, mas algumas pessoas sentem desconforto pela alta concentração de carboidrato, preferindo usar balas de goma, sachê de mel, Coca-Cola, isotônico, maltodextrina diluída e até geleia de mocotó", diz Bizan.

"Uma boa estratégia para indivíduos com maior propensão a ter hipoglicemia é realizar um sprint de 10 segundos a cada 20 minutos de corrida", diz a endocrinologista Karla Melo. Isso aumenta a concentração de hormônios como cortisol e adrenalina, que prejudicam a ação da insulina e, por isso, o açúcar no sangue sobe.


Hidratação

Assim como para qualquer pessoa, a recomendação é de que corredores diabéticos façam a ingestão de 250 ml de líquidos a cada 15 ou 20 minutos de atividade. "Em casos de hiperglicemia, onde há maior propensão à desidratação e cãibras, o mais indicado são produtos livres de carboidrato, mas que mantenham os sais minerais, para separar a reposição hídrica da energética", diz Sônia de Castilho. Um exemplo desse tipo de repositor eletrolítico disponível no mercado brasileiro é o Suum, na forma de uma pastilha efervescente.

Aplicações na "pista"

O diabético terá que se acostumar a tomar medidas de controle na corrida. Quando a taxa glicêmica estiver alta, é necessária a aplicação imediata de uma dose de insulina. Evite aplicá-la no grupo muscular que está sendo usado no exercício, pois a maior circulação sanguínea na região aumenta o poder de ação da insulina, trazendo o risco de uma hipoglicemia reativa. Diabéticos tipo 1 ou tipo 2 usuários de insulina devem sempre levar consigo algumas doses de emergência, junto com seus monitores de glicemia. "E, como os efeitos do exercício prevalecem horas após o treino, é preciso reajustar a dose de insulina nesse período", diz Ana Ramalho.

Há três formas possíveis de aplicação da insulina: por seringa, caneta de aplicação descartável ou bomba de infusão, semelhante a um pager com uma cânula que injeta a insulina de forma gradual e contínua. Nas provas e treinos, ao usar tanto a seringa quanto a caneta, procure não levá-las já preparadas para evitar vazamentos e risco de contaminação. Leve o kit fechadinho, pare no canto da pista, faça a aplicação e só então retome a corrida. Atenção: não tente aplicar a insulina em movimento.

Luana Alves

Tenho mania de escrever e de ver sempre o lado bom das coisas. Com diabetes desde 2010, acredito que uma vida controlada e divertida é possível sim. Jornalista, creio que posso ajudar os outros a acreditar também. Que saber mais sobre mim? Clica aqui!

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